A perfeita alegria

A alegria anda desaparecida dos lábios e corações humanos. É tão triste e desolador o panorama mundial; tão insana a luta diária pela sobrevivência e o ganho suado do pão de cada dia. É tão decepcionante todo o esforço contínuo e diuturno por relações humanas que se revelarão na próxima esquina traidoras, desonestas, infrutíferas. É tanto e tudo e mais, que a alegria pura, que jorra com frescor e transparência parece distante, longínqua e mesmo inalcançável..
No dia 4 de outubro celebrou-se a festa de um santo que nos ensina que a alegria – esse artigo raro – pode ser encontrada bem perto, mesmo ao lado. Francisco de Assis, burguês filho de rico comerciante, despiu-se um dia em plena praça para declarar seu amor a Jesus Cristo. E desde aí empreendeu um caminho que o levou aos braços da verdadeira alegria. Alegre e maravilhado com a vida, seu testemunho fala alto ainda hoje aos homens e mulheres do novo milênio.
Um dia Francisco deu a um leproso uma esmola e um beijo. Essa doação dos bens e dos afetos introduziu-o como noviço na escola da perfeita alegria que, no entanto, o levaria por caminho bem diferente daquilo que a lógica humana entende.

Seus sentidos e sua corporeidade afinavam-se à beleza do criado de maneira a sentir-se irmão de tudo e de todos. Vivendo uma fraternidade universal, Francisco apaixonava-se por tudo o que existia e respirava: do lobo ao cordeiro, da água à terra, da vida à morte. Seu olhar maravilhado transformava em canto de louvor toda experiência de vida por mais simples que fosse. Tudo se transfigurava e se revelava grávido do Espírito divino diante de seu coração extasiado.
Por outro lado, seu desejo crescia em ardor e intensidade pela pobreza que o despojava paulatina e radicalmente de toda posse e todo bem. Sedutora como uma bela mulher, a Dama Pobreza conduzia suavemente Francisco em seu caminho descendente de despojamento até chegar ao fundo mais profundo da condição humana, onde o esperava o rosto de seu Senhor feito pobre com os pobres em sua Encarnação e Cruz.

Assim é que a vida de Francisco foi marcada por várias rupturas: era rico e rompeu com a riqueza; rompeu com o pai para viver desatado de todos os laços, mesmo os mais legítimos; rompeu com o orgulho e a avareza, para assumir um modo de vida fundamentado na caridade e na humildade. Em um mundo hierárquico, propôs uma solidariedade horizontal na mais absoluta simplicidade.
E foi aí neste “não ter” nem “ser” nada neste mundo que Francisco encontrou a alegria. Seria doente? Masoquista? Louco? Parece que não, pois até hoje não apareceu sobre a terra homem mais alegre do que Francisco de Assis. Todas essas rupturas, Francisco as fez para abraçar um grande amor. Seu grande amor era Jesus, por quem o Pobrezinho de Assis se apaixonou de tal maneira que terminou por assemelhar-se a ele inclusive nas chagas da Paixão.
A Frei Leão, ensinando o que era a perfeita alegria, Francisco mostrou o caminho da caridade humilde que “tudo crê, tudo espera e tudo suporta”. A única tristeza de sua vida era que o Amor não era amado. Para amar esse que é a fonte do Amor, Francisco a tudo deixou e com tudo rompeu. Ao final desse caminho, esperava-o a comunhão maravilhada com toda a criação. E também a perfeita alegria de saber que a pobreza, a humildade e a caridade em meio a todas as tribulações são o que realmente torna o ser humano livre. Desta liberdade feita de renúncia a tudo que não seja Deus jorra a perfeita alegria, que nada nem ninguém pode extirpar.
Que Francisco de Assis, homem do milênio, nos ensine a construir um mundo feito desta alegria livre e apaixonada, fruto de despojamento, sobriedade, simplicidade e capacidade sem fim de maravilhar-se.

Os Salmos: a anatomia da alma humana

Os salmos constituem uma  das formas mais altas de oração que a humanidade produziu. Milhões e milhões de pessoas, judeus, cristãos e religiosos de todas as tradições, dia a dia, recitam e cantam salmos, especialmente os religiosos e religiosas e os padres no assim chamado “ofício das horas”diário.
Não sabemos exatamente quem seus autores, pois eles recolhem as orações que circulavam no  meio do povo. Seguramente muitos são de Davi (século X a.C). É considerado, por excelência, o protótipo do salmista. Foi pastor, guerreiro, profeta, poeta, músico, rei e profundamente religioso. Conquistou o Monte Sion dentro de Jerusalém e lá, ao redor da Arca da Aliança, organizou o culto e introduziu os salmos.
Quando se diz “salmo de Davi” na maioria das vezes significa: “salmo feito no estilo de Davi”. Os salmos surgiram no arco de quase mil anos, nos lugares de culto e recitados pelo povo até serem recopilados na época dos Macabeus no século II.a.C. O saltério é um microcosmo histórico, semelhante a uma catedral da Idade Média, construída durante séculos, por gerações e gerações, por milhares de mãos e incorporando as mudanças de estilo arquitetônico das várias épocas. Assim há salmos que revelam diferentes concepções de Deus, próprias de certa época, como aqueles, estranhas para nós, que expressam o desejo de vingança e o juízo implacável de Deus.
Os salmos testemunham a profunda convicção de que Deus, não obstante habitar numa luz inacessível, está em nosso meio, morando como que numa tenda (shekinah). Podemos chegar a Ele, em súplicas, lamentações, louvores e ações de graças. Ele está sempre pronto para escutar.
O lugar denso de sua presença é o Templo onde se cantam os salmos. Mas como Criador do céu e da terra, está igualmente em todos os lugares, embora nenhum possa contê-lo.
Com razão, se orgulhavam os hebreus dizendo: “ninguém tem um Deus tão próximo como nós”! Próximo de cada um e no meio de seu povo. Os salmos revelam a consciência da proximidade divina e do amparo consolador. Por isso há neles intimidade pessoal sem cair no intimismo individualista. Há oração coletiva sem destituir a experiência pessoal. Uma dimensão reforça a outra, pois cada uma é verdadeira: não há pessoas sem o povo no qual estão inseridas e não há povo sem pessoas livres que o formam.
Ao rezar os salmos, encontramos neles a nossa radiografia espiritual, pessoal e coletiva. Neles identificamos nossos estados de ânimo:  desespero e alegria, medo e confiança, luto e dança, vontade de vingança e  desejo de perdão, interioridade e fascinação pela grandeza do céu estrelado. Bem o expressou o reformador João Calvino (1509-1564) no prefácio de seu grandioso comentário aos salmos:
“Costumo definir este livro como uma anatomia de todas as partes da alma, porque não há sentimento no ser humano que não esteja aí representado como num espelho. Diria que o Espírito Santo colocou ali, ao vivo, todas as dores, todas as tristezas, todos os temores, todas as dúvidas, todas as esperanças, todas as preocupações, todas as perplexidades até as emoções mais confusas que agitam habitualmente o espírito humano”.
Pelo fato de revelarem nossa autobiografia espiritual, os salmos representam a palavra do ser humano a  Deus e, ao mesmo tempo, a palavra de Deus ao ser humano. O saltério serviu sempre como  livro de consolação e fonte secreta de sentido, especialmente quando irrompe na humanidade o desamparo, a perseguição, a injustiça e a ameaça de morte. O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) deu este insuspeitado testemunho:”Das centenas de livros que li nenhum me trouxe tanta luz e conforto quanto estes poucos versos do salmo 23: O Senhor é meu pastor e nada me falta; ainda que ande por um vale tenebroso, não temo mal nenhum, porque Tu estás comigo”.
Um judeu, por exemplo, cercado de filhos, era empurrado, para as câmaras de gás em Auschwitz. Ele sabia que caminhava para o extermínio. Mesmo assim, ia recitando alto o salmo 23: “O Senhor é meu pastor…Ainda que eu ande pela sombra do  vale da morte, nenhum mal temerei, porque Tu estás comigo”. A morte não rompe a comunhão com Deus. É passagem, mesmo dolorosa, para o grande abraço infinito da paz eterna.
Por fim, os salmos são poesias religiosas e místicas da mais alta expressão. Como toda poesia, recriam a realidade com metáforas e imagens tiradas do imaginário. Este obedece a uma lógica própria, diferente daquela da racionalidade. Pelo imaginário, transfiguramos situações e fatos detectando neles sentidos ocultos e mensagens divinas. Por isso dizemos que não só habitamos prosaicamente o mundo, colhendo o sentido manifesto do desenrolar rotineiro dos acontecimentos. Habitamos também poeticamene o mundo, vendo o outro lado das coisas e um outro mundo dentro do mundo de beleza e de  encantamento.
Os salmos nos ensinam a habitar poeticamente a realidade. Então ela se transmuta num grande sacramento de Deus, cheia de sabedoria, de admoestações e de lições que tornam mais seguro nosso peregrinar rumo à Fonte. Como bem diz o salmista: “quando caminho entre perigos, tu me conservas a vida…e estás  até o fim a meu favor” (Salmo 138, 7-8).

IRMÃO SOL


São Francisco nutria um amor todo particular pelo sol e pelo fogo. Costumava dizer: "De manhã, quando o sol se levanta, todas as pessoas deveriam louvar a Deus, que o criou para a nossa utilidade, pois é por ele que nossos olhos são iluminados durante o dia. Do mesmo modo, quando desce a noite, todas as pessoas deveriam glorificar a Deus pelo nosso irmão fogo, pelo qual nossos olhos são iluminados durante a noite. Na verdade, somos todos como cegos e o Senhor ilumina os nossos olhos por meio desses nossos irmãos. Portanto, devemos louvar de maneira toda especial nosso criador por causa dessas criaturas, das quais nos servimos cada dia". E foi isto que o nosso pai São Francisco fez durante toda a sua vida.
A energia do desejo – Numa perspectiva franciscana                  

São Francisco enxerga o seu desejo com os “olhos espirituais”. O Espírito é a grande energia que move o ser humano, pois é dele que nascem os nossos desejos.Estamos iniciando uma proposta de oração contemplativa na visão de São Francisco. Em seus escritos, o santo usa apenas uma vez a palavra contemplação.

O Espírito na obediência franciscana
São Francisco teve uma enorme intuição, ou revelação quando disse, na primeira regra, que todo frade que vem a nós é trazido pelo Espírito para nos renovar. Quis até colocar na Regra que o Espírito Santo é o Ministro Geral da Fraternidade. E levado por esse Espírito, Francisco conseguiu ver a diferença entre os “maiores” e menores do seu tempo, e decidiu optar pelos últimos. Uma fraternidade formada pelo Espírito de Deus certamente não é um simples clube de amigos. Não podemos selecionar só os que nos são simpáticos, só os que concordam conosco, só os que não nos criam problemas. Não partimos das boas qualidades de cada um. Não nos constituímos como sociedade para obter finalidades ou vantagens. Uma fraternidade formada pelo Espírito de Deus acolhe cada um como enviado pelo mesmo Espírito, acredita que cada um traz uma comunicação muito especial do mesmo espírito.

Energia interior
 Sobre a oração de São Francisco, encontramos em Celano esse texto característico: “Procurava sempre um lugar escondido, onde pudesse entregar a Deus não só o seu Espírito, mas todo o seu corpo. Quando estava em lugares públicos era visitado de repente pelo Senhor. Com Francisco percebemos que o mundo do Espírito é tanto ou mais real que o mundo “concreto”, “real”, com que lidamos todos os dias. Nossos impulsos, influências, são realidades. A família, a raça, a cultura vivem dentro de nós mais realmente do que fora. O que nós remos que aprender é a descobrir como cultivar o Espírito interior para ter consciência cada vez maior de sua realidade concreta. Ele é o caminho, através da nossa história pessoal, de nossos sonhos, de nossos ideais, de nossa sombra interior, de nossa imagem pessoal...para o encontro do eu mesmo de cada um de nóspara o encontro da profundidade unificante de Deus.

Conclusão
Cada indivíduo é um mundo de desejos. E uma mensagem sempre renovada para os outros. Cada um de nós, de forma original, é um sonho de Deus que nos quer ver outros Cristos. Tudo começa como Espírito, sem ele é impossível orar. O espírito não é agarrável, por que é infinito. É preciso discernir os Espíritos. Nem sempre é possível rotular bem e mal. Nem conveniente.

Os 10 pilares da Espiritualidade franciscana


Da vida e do modo de ser de São Francisco nasceu uma inspiração de vida, um caminho. A espiritualidade franciscana é fundamentalmente seguimento do Cristo pobre, humilde e crucificado. E o seguimento torna-se um encantamento, que por sua vez leva à configuração com o Cristo. Algumas características desta espiritualidade: 

 1. Espiritualidade evangélica A vida e a regra' franciscana é o próprio evangelho; vida de conversão para o evangelho.

 2. Vida em fraternidade 'Deus me deu irmãos' - a fraternidade, entre irmãos e irmãs, que Deus nos deu, com todas as pessoas e com todas as criaturas. 

 3. Espiritualidade trinitária Deus é o Sumo Bem; o Filho nosso irmão; o Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar. Maria, o modelo: filha, mãe e esposa.

 4. Sem nada de próprio Seguir o Cristo pobre é a condição do nosso caminho. Livre para amar e servir, retirando tudo o que se interpõe entre as pessoas. O modelo é a encarnação do Verbo. 

 5. A minoridade 'Servo de toda humana criatura'; o serviço do lava-pés; a 'autoridade' evangélica. 

 6. A espiritualidade do trabalho A 'graça' de trabalhar; trabalhar com as 'próprias mãos'; constrói a fraternidade; trabalhar como menores; trabalhar com 'devoção'; afugenta o ócio, inimigo da alma. 

 7. A contemplação franciscana O espírito de oração e devoção que abrange toda a vida e a vida toda; rezar sempre e rezar a vida; rezar no mundo e no conflito; a mediação das criaturas. O eremitério e a solidão. 

 8. A evangelização franciscana Evangelizar e deixar-se evangelizar; o 'evangelho vivo' do seguimento; é dom da vocação que se prolonga em missão; a fraternidade é o 'coração' da evangelização. 

 9. Espiritualidade eclesial e católica A fraternidade vivida no seio da Igreja; é célula eclesial, integrada nos serviços e nos ministérios da Igreja. Católico: experimentar Deus e a sua graça em todo tempo e lugar. 

 10. A perfeita e verdadeira alegria Acolher, integrar e transformar o 'negativo' da vida. A cruz, fonte da verdadeira alegria.

REFLEXÃO BÍBLICA

O evangelho das bem-aventuranças


Já se disse, com maior ou menor razão, que o Sermão da Montanha (ou o conjunto de discursos assim denominado) constitui um resumo da espiritualidade evangélica. E talvez possamos considerar o discurso mais conhecido mais bem sucedido de Jesus, as bem-aventuranças como uma síntese do sermão da montanha e dos valores espirituais que Cristo nos ensinou. E mais ainda: o próprio Cristo é uma encarnação das bem-aventuranças, que, vividas e anunciadas por ele, transformam-se nos valores espirituais de um reino que é constituído em primeiro lugar pelo próprio jesus.

As bem-aventuranças representam “a grande profecia do evangelho”, precisamente porque propõe um ideal que é inalcançável plenamente aqui  na terra mas no qual, ao mesmo tempo, podemos ir avançando e crescendo. É o ideal do “homem novo”, o homem que, revestindo-se do homem  do Evangelho, reveste-se de Cristo.

O caráter profético das bem-aventuranças acarreta a impossibilidade de serem vividas sem a presença especial do Espírito Santo, pois superam o esforça humano. Elas implicam o dom da sabedoria, o dom da fortaleza, e da delicadeza do amor que o Espírito proporciona. Por isso as bem-aventuranças são proféticas e pouco compreendidas. Por um lado, elas são dignas de admiração, inclusive entre os não crentes. Por outro lado, porém, devemos reconhecer que há um certo ceticismo ou incompreensão em relação a elas. Elas podem constituir uma pedra de escândalo e serem ridicularizadas. Entretanto, devemos recordar que as grandes exigências do evangelho são sempre suscetíveis do ridículo: o perdão das ofensas, a não violência, o celibato, a pobreza e as bem-aventuranças são sempre exigências que estão no limite do espírito do evangelho e da compreensão humana.

Mas, diante disso tudo, as bem-aventuranças permanecem como a grande mensagem de Cristo aos seus discípulos. Os próprios evangelistas ressaltam que Jesus falou aos discípulos, isto é, aqueles que de alguma forma iriam ser diferentes dos outros. Ele falou aos cristãos, que vivem o dinamismo da sua transformação em homens novos. Falou também aos discípulos que, por outro lado, desejam a perfeição evangélica e, por outro lado buscam a felicidade, como todo homem. Jesus não opõe o destino humano à perfeição evangélica. Nós estamos tão destinados á felicidade que não podemos encontrar nas exigências de Cristo, inclusive nas bem-aventuranças, certa oposição ao chamado de Deus à felicidade. Cristo fez com que as duas coisas coincidissem, prometendo o destino do evangelho para o tempo presente. As bem-aventuranças não são apenas uma promessa para a outra vida, mas uma promessa e uma luz para a vida atual. Não constituem um consolo. Não tem nada de alienante. São ao mesmo tempo escatológicas e históricas.